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terça-feira, 14 de outubro de 2014

PEDAGOGIA BENEDITINA: O ESPÍRITO DA VERDADE VOS GUIARÁ



        
                   3.        O ESPÍRITO DA VERDADE VOS GUIARÁ



Sempre que a alma humana lança-se em busca de Deus, é certo necessitar daquela segurança que qualquer desenvolvimento espiritual exige, e quando me refiro à segurança, naturalmente não estou mencionando os bens materiais que compõem, por exemplo, toda a estrutura física de um monastério, embora isso tenha seu valor e importância. Refiro-me, na realidade, à santa doutrina da Igreja, alicerçada que está nas Sagradas Escrituras, bem como ao tesouro tradicional que se encontra vinculado à gênese do cristianismo – neste caso, ainda mais particularmente, da tradição monástica. Para que o indivíduo não se transvie do caminho que conduz à verdade, é imprescindível valer-se dessa proteção. Sem dúvida, existem atalhos perigosos na vida espiritual, becos sombrios, rotas alternativas que ofertam supostas facilidades, e é provável que todas direcionem a situações comprometedoras. Mas o caminho que nasce da doutrina bíblica e da tradição, este sim é o caminho mais seguro para a alma humana. Se o aconselhável é firmar-se nessa estrada, também se faz necessário tomar cuidado para não se enrijecer excessivamente ao se valer das soluções convencionais. Pois trilhar a rota da fé significa avançar na escuridão do raro conhecimento, aceitar a convivência permanente com o mistério, abdicar de planos pessoais em favor da Vontade do Senhor, ser instruído diretamente pelo Espírito Santo. No Evangelho de João (14, 26), Cristo diz: o Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que vos disse. Quando tememos ser surpreendidos pela ação direta do Paráclito em nossa alma, lamentavelmente perdemos a chance de receber os ensinamentos complementares que Deus assim nos concede. 

Poucos temas de ordem teológica foram abordados nas últimas décadas tão frequentemente e com tamanho ardor quanto a pneumatologia. Sem dúvida, parece existir na Igreja uma sede do Espírito. Há certas características concernentes ao Paráclito que nos auxiliam a compreender o que motiva essa atenção especial a Ele dedicada. Por ser representado como o sopro de Deus, mostra a capacidade de renovar não apenas a Igreja como instituição, mas principalmente a alma dos cristãos de modo bastante particular, dispersando o ar viciado e opressivo que já não é capaz de fornecer alento verdadeiro. Sendo a pessoa divina responsável por transmitir princípio vital às criaturas, o Espírito é amplamente desejado quando sentimos carecer da energia essencial que nos conserva vinculado à realidade sagrada. Finalmente, por ser a forma de manifestação sobrenatural de maior excelência, é buscado como resposta às expectativas de relação com o divino que os homens alimentam. Portanto, se há um interesse sincero no que tange a esse assunto, certamente é porque há necessidades humanas. Nessa circunstância existencial, carecendo receber o influxo do Espírito Santo com sua potência renovadora e restauradora, o indivíduo precisa saber que a ligação com a terceira pessoa da Santíssima Trindade não é algo tão simples. Muitos cristãos gostariam de exercer uma autoridade tão absoluta sobre o Paráclito a ponto de aprisioná-lo, domesticá-lo e submetê-lo ao próprio arbítrio, determinando minuciosamente sua atuação. Poder-se-ia afirmar que existe, inclusive, um lobby bastante organizado no sentido de vincular o Espírito às mais variadas linhas ideológicas e teológicas com o intento de alcançar uma justificativa divina para propostas meramente humanas. Contudo, o Espírito caracteriza-se por ser livre, sopra onde assim escolher, e quando se constrói um discurso supostamente pneumatológico, impede-se sua verdadeira ação benfazeja, e, ao invés de renovação, o que a Igreja encontra é caducidade. Também creio ser relevante observar que o Espírito Santo não se apresenta como o contraponto à doutrina e à tradição. Seu processo renovador não tem caráter revolucionário, não visa derrubar as estruturas vigentes com a intenção de reconstruí-la segundo um paradigma renovado ou proporcionar uma experiência religiosa desprovida de toda manifestação ritualística, dogmática, apologética, etc. Mesmo Jesus Cristo não veio a este mundo para abolir as leis e os profetas: sua missão consistia em tudo cumprir, levando a história da salvação à plenitude (Mateus 5, 17 – 18). De fato, existe consonância entre a doutrina, a tradição e o Espírito. A função do Paráclito sempre foi ensinar e alentar a Igreja, embora exista quem acredite ser Sua missão desconstruí-la ou substituí-la, desse modo inaugurando um novo tempo, não como plenitude do tempo antigo, porém como uma espécie de negação[1]

Citando, no Prólogo da Regra, o texto do Apocalipse (capítulo 2, versículo 7), São Bento convida:

Quem tiver ouvidos, venha ouvir o que o Espírito diz às Igrejas.

O candidato à vida monástica levará em conta, portanto, a importância de conservar-se atento a essa voz, não aos supostos portadores da mensagem – seus instrumentalizadores, digamos –, mas propriamente à voz do Espírito que não se esquiva do contato pessoal. Santa Teresa de Ávila nos ensinava que, a respeito das experiências místicas, todo cristão precisa manter-se atento aos frutos produzidos: sendo bons, as experiências têm origem divina, caso contrário não. Também o monge pode utilizar o mesmo expediente ao escutar, com mansidão, o Santo Espírito. Aquilo que traz perturbação, angústia e amargura não provém de Deus, nem tampouco o que se pretende revoltoso, agressivo e destruidor. Um dom concedido pelo Paráclito a determinados indivíduos é o dom da profecia. No Antigo Testamento existe uma bela manifestação do Espírito de Deus ao profeta Elias: E Deus disse: “Sai e fica na montanha diante de Iahweh.” E eis que Iahweh passou. Um grande e impetuoso furacão fendia as montanhas e quebrava os rochedos diante de Iahweh, mas Iahweh não estava no furacão; e depois do furacão houve um terremoto, mas Iahweh não estava no terremoto; e depois do terremoto um fogo, mas Iahweh não estava no fogo; e depois do fogo, o ruído de uma leve brisa. Quando Elias o ouviu, cobriu o rosto com o manto, saiu e pôs-se à entrada da gruta (1 Reis 19, 11 – 13). Pode-se supor que muitos devotem esperança em uma espécie de ação turbulenta de Deus que, a exemplo do furacão, do terremoto e do fogo provoque um abalo estrondoso na estrutura física da realidade, no entanto, o Senhor se encontra, de fato, na leve brisa. Suavemente, dessa forma o Espírito Santo se apresenta, modelando sem violência a alma do monge, ensinando com paciência, conciliando-se com a herança doutrinal e tradicional do cristianismo. O espírito de contestação e rebelião é de outra categoria, uma categoria inferior e intrinsecamente satânica. Mas quanto ao Espírito de Deus, podemos afirmar que é sempre Santo e edifica em santidade. 

Tanto a doutrina que se baseia nas Sagradas Escrituras quanto a tradição enriquecida durante os séculos de cristianismo são caminho seguro, como disse, e ali o percurso não apresenta perigos, sendo adequado dizer, inclusive, estar igualmente franqueado a todas as pessoas. O caminho da interação direta com o Espírito, embora complemente a via anterior, exibe uma característica diversa: é essencialmente mistério. Hoje talvez pareça improvável que a Igreja entenda com tranquilidade a convivência com esse fator miraculoso, contudo, a Igreja primitiva denotava aceitar naturalmente todas as manifestações misteriosas do Paráclito que se sucederam ao tempo do Pentecostes. O apóstolo Paulo enumera os carismas distribuídos à comunidade: sabedoria, ciência, fé, dom de curas, poder de realizar milagres, profecia, discernimento dos espíritos, falar em línguas e interpretá-las (1 Cor 12, 4 – 11). Não existia, naquele momento, a sensação de estranhamento diante do contato sobrenatural com a realidade divina. Os cristãos primitivos recebiam e transmitiam a doutrina de Cristo e desenvolviam sua estrutura litúrgica, teológica, missionária, etc., convivendo perfeitamente com os carismas. Mas e dentro de uma comunidade monástica contemporânea, como são recepcionados os dons carismáticos? Não é característica do Espírito transgredir a edificação doutrinária e tradicional do cristianismo, entretanto, ao empreender Sua tarefa de vivificar a Igreja com o sopro divino, inúmeras vezes acaba desnorteando quem se fecha para o relacionamento íntimo com Deus. Mesmo em um mosteiro que teoricamente deveria ser contemplativo, acontece de os carismas suscitarem desconforto, podendo inclusive ser sufocados até quase desaparecer. Trata-se, em casos assim, de um medo explícito de se defrontar com o sagrado.






[1] Esse conceito nasce, de algum modo, em Joaquim de Fiore (século doze). Sobre o tema leia: Nachman Falbel, Os Espirituais Franciscanos, 1995, São Paulo, Perspectiva. 

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