" " NOVA CASTÁLIA: SUZI

Curta a Página do Autor

domingo, 7 de dezembro de 2014

SUZI







1.



O táxi deixou Suzi em frente ao edifício da administração. Primeiro havia ultrapassado a cancela com guarita que ofertava acesso ao Hotel Fazenda Solário, e corrido a curta estrada até alcançar o destino. Suzi admirara as caliandras plantadas à beira do caminho, o tom róseo característico das folhas em combinação com outras tonalidades da paisagem. O gramado ao redor parecia ter sido cortado recentemente, pois seu verde escuro exibia-se em matiz homogêneo; quanto ao firmamento, mantinha-se totalmente aberto, e no azul vibrante não se adivinhava nem sequer um fiapo de nuvem. Suzi acertou o pagamento com o taxista e, em seguida, dirigiu-se à recepção.
– Pois só o que eu sei é que vocês combinaram de vir fazer a manutenção das piscinas e estou aguardando – dizia o homem ao telefone. – Tenho cento e sete hóspedes chegando amanhã, e preciso muito das piscinas em ordem.
Ele viu Suzi, e gesticulando na direção da moça, solicitou que aguardasse um instante. Era de boa estatura e robusto. Os cabelos, a barba cerrada, a tez morena, tudo suscitava a possibilidade de uma descendência árabe. Trajava camisa de tecido resistente, abertos os botões superiores, e na medida em que se movia ao telefone, Suzi vislumbrou um crucifixo dourado no pescoço. Havendo terminado a ligação, dirigiu-se a ela.
– Se a gente não cobra os serviços, esse povo não aparece – explicou-se. Com segurança, apertou a mão da moça. – Sou Kamal, proprietário. Veio a trabalho?
– Sim. Sou a massoterapeuta.
– Suzi, não é?
– Isto.            
– Desde cedo estou recebendo funcionários e mercadorias. Cozinheiros, faxineiras, carregadores… está uma loucura! Duas horas atrás, precisei conferir os laticínios que vieram num caminhão, e, ao mesmo tempo, chegaram entregas de refrigerante e água mineral – observou-a detidamente. Suzi era mais baixa, e fitava-o da posição inferior sinalizando certo nervosismo. Havia manchas quase imperceptíveis na testa da moça, consequência de um bronzeamento recente mal sucedido, no entanto, esse defeito não comprometia excessivamente seu aspecto. Bonita de modo não exuberante, com razoável forma física, e seios de tamanho médio que se ocultavam debaixo da blusa. – Pois bem, serão dez dias de trabalho. A maioria dos funcionários reside em Atibaia, e os outros ficarão hospedados na administração. São cômodos particulares, não se preocupe. Você não é daqui, pelo que soube.
– Não sou – Suzi respondeu. – Disse cento e sete hóspedes?
– Por quê? O número te assusta? São cento e sete realmente, mas fique tranquila. Trata-se de uma reunião da terceira idade. Gente simpática, acredite. Costumo recebê-los periodicamente, e não há demasiada agitação. Além disso, meu hotel fazenda tem diversas atividades, eles acabam se distraindo bastante com as piscinas e os animais.
Suzi deixou-se conduzir até o cômodo, subindo por uma escada externa ao segundo andar do edifício.
– Servimos o jantar às sete horas. Você atenderá os hóspedes amanhã, das nove às três da tarde, com um intervalo para o almoço – disse o proprietário. – Descanse bem. Serão dez dias, de qualquer maneira.
– Pode deixar.
Sentiu-se mais à vontade assim que se despediram. Por algum motivo, Kamal acentuava sua ansiedade costumeira, talvez porque fosse o patrão, e ela estivesse atuando como massoterapeuta pela primeira vez. Praticara com os demais colegas do curso e com voluntários. Somente isso. Contudo, recebera elogios na formatura, e esperava ser suficientemente capaz de exercer a função, mesmo considerando que atender cento e sete pessoas significasse bastante responsabilidade. No cômodo, buscou alojar-se da melhor forma possível. Tudo ali dentro era simples: em vez de cortinas, persianas plásticas; cobrindo a mesinha uma toalha descorada; e no banheiro o tapete era emborrachado e escuro. Com toda certeza a decoração dos bangalôs dedicados aos hóspedes devia ser outra. Mais estética e confortável.
Se comesse em excesso, temia sofrer indigestão, e não estar em condições aceitáveis no dia seguinte. Por isso, desceu para o jantar bastante cedo, e ingeriu apenas sanduíche e suco. Havia poucos funcionários às mesas, e Suzi preferiu não interagir com ninguém naquele instante. Às vezes, percebia-se constrangida em ambientes desconhecidos, e se soltava tão-somente depois de certo tempo, ao habituar-se à situação ou descontraindo-se com algum outro fator surpreendente. Retornando ao cômodo, estirou-se na cama e, com o intuito de convocar o sono, cansou-se lendo um romance. Com o desenrolar da noite, o silêncio na área externa recrudescia, e Suzi concentrava-se na leitura do romance tentando esquecer que permaneceria sozinha durante aqueles dias de trabalho. Finalmente, sentindo-se suficientemente sonolenta, desligou as luzes e decidiu dormir. Mas o sono tardava, e Suzi revirou-se sobre o colchão. Provavelmente não conseguira ainda se desvencilhar do estado de ansiedade. Caso voltasse ao livro, perderia por completo qualquer perspectiva de repouso, e assim Suzi teimou em continuar travando a mesma batalha. Só após as quatro horas o corpo cedeu ao cansaço, e ela desabou.



2.

      

Sofreu as consequências naturais da noite mal dormida: acordou indisposta e contrariada. Bebeu diversas xícaras de café bem forte, e dirigindo-se à sala onde realizaria as massagens, testemunhou os três ônibus que surgiram trazendo os hóspedes. Desembarcavam ruidosamente, e depois de se terem acomodado nos bangalôs, já começaram a perambular pelo hotel fazenda. Perto das onze horas, formou-se uma fila diante da sala de massoterapia. Suzi contou oito pessoas. Conforme dissera Kamal, eram todos hóspedes calmos e simpáticos, e embora ainda percebesse alguma tensão em si mesma, controlou-se provisoriamente, atendendo a todos até que chegasse o horário de almoço.
Passado o horário do almoço, Suzi ainda recebeu outras doze pessoas. Terêncio, um senhor negro cuja figura esbanjava bastante disposição, mostrou-se falante e jocoso durante todo o tempo, e na companhia dele a massoterapeuta conseguiu descontrair-se.
– Sua diabinha! Assim você me deixa mal acostumado – falou, recebendo a massagem.
– Puxa vida, seu Terêncio! O objetivo da massoterapia é deixar as pessoas bem acostumadas.
– Não se faça de rogada, menina. Você sabe do que é que estou falando – Terêncio insinuou, divertindo-se. – Minha falecida esposa nunca foi dessas coisas.
– Dessas coisas?
– Era uma ótima mulher, eu te asseguro. Só que não tinha esse talento tão especial. Meu Deus! Estou todo relaxado aqui!
Suzi riu.
– O senhor é boa pessoa.
– Passei dos setenta, trabalhei bastante durante a vida toda, tento manter a saúde em dia e, nesta fase, pouco me resolve esquentar a cabeça. Ser dessa maneira é o remédio que eu uso contra qualquer problema.   
Às quinze horas, Suzi encerrou seu atendimento. Fatigara-se bastante, entretanto, estava satisfeita com o desempenho, mesmo considerando ser somente uma iniciante. Soubera usar com muita correção as técnicas aprendidas no curso, e isso causava nela um sentimento de alívio. Sozinha, decidiu caminhar pela área do hotel fazenda a fim de conhecer o terreno, gozando o tempo agradável da região. Partindo da administração, Suzi enveredou pelo caminho de seixos em direção ao lago artificial que estava no centro daquela propriedade, utilizando-se de um ritmo vagaroso, e distraindo-se teimosamente com as pedras do caminho, às vezes de uma coloração escura, outras vezes clara. Às margens do lago, deixou-se observar os cisnes deslizando sobre as águas. Os animais vogavam de maneira plácida, como se o ambiente ruidoso causado pelas atividades dos hóspedes não os incomodasse. Do lado oposto, encontravam-se as piscinas, e Suzi percebeu que, declinando a tarde, os banhistas morosamente se retiravam. As águas do lago arrepiaram-se com os ventos que anunciavam o termo do dia, e de forma instintiva, Suzi esfregou os braços como se buscasse aquecê-los. Seguiu a rota determinada pelo caminho de seixos, e ao deparar-se com uma bifurcação, subiu rumo à área dos banhistas. Havia-se encerrado finalmente a movimentação, e encontrar o local tão silencioso e estacionado causou-lhe certa melancolia. Somente o bar mantinha-se aberto, e Suzi acercou-se do balcão.
– Servem bebida alcóolica?
– Servimos – respondeu o funcionário.       
– Margarita, por favor.
Gostou de constatar o efeito da bebida. Sentia-se descontraída e segura, como se toda a tensão daquele dia inicial de trabalho se extinguisse. O barulho oriundo dos hóspedes, agora recolhidos nos bangalôs, chegava até as piscinas, e Suzi imaginou que todos se preparavam para a refeição noturna servida no refeitório junto à administração. Mesmo cansada, não estava faminta. Preferia fruir o momento, ao invés de misturar-se à confusão de pessoas em mesas abarrotadas. Terminando a margarita pediu outra dose, e enquanto continuava à espera, foi abordada.
– Você é a massoterapeuta que o Kamal contratou, não é?
– Sou sim.
– Me chamo Laerte, e trabalho como enfermeiro aqui. Vi você bebendo, e achei bom conversar contigo.
– Será que tem problema?
– Beber? Pois então, é possível… a gente é funcionário, não é? Suponho que o Kamal talvez se incomode. Ou nem tanto. Isso não costuma acontecer, sabe? Digo, a gente beber na piscina, me refiro aos funcionários. Às vezes tomo vinho, admito, mas prefiro o terraço do segundo andar, ali onde a gente fica alojado. Depois, tudo é muito caro neste lugar, e eu sempre acho melhor ir ao centro comprar no supermercado.
– O centro fica distante.
– Isso é. Por esse motivo tenho o costume de trazer duas ou três garrafas quando já sei que os hóspedes vão ficar por muitos dias… – Laerte fez uma pausa antes de expor a sugestão. – Penso que o mais seguro mesmo seja beber no terraço.
Suzi aceitou o convite.
– Tem bastante tempo que você trabalha no Solário?
– Sete meses – disse Laerte. Ele despejava a bebida no copo de plástico que entregara a Suzi, ambos sentados no piso do terraço – Trabalhei em dois hospitais antes. Só que aqui é mais tranquilo. Eu prefiro.
– E o salário?                 
– Ganho menos agora do que antes, quando me dedicava a uma profissão diferente. Fui jogador de futebol até os meus trinta e quatro anos.
– Sério?                                   
– Sério.                   
– Que idade tem atualmente?
– Faço trinta e nove em Julho deste ano. E você?
– Vinte e dois.
O vinho excessivamente doce que Suzi ingeria misturava-se à saliva, tornando-a mais viscosa.
– Eu não sou de torcer – ela confessou. – Mas fiquei curiosa… em quais clubes você jogou?
– Nasci no Rio, e comecei no Olaria aos dezessete anos. Fui da divisão de base. Sabe o que significa, não sabe? Desde moleque eu sonhava em me profissionalizar. O futebol é generoso para os que conquistam fama… mas também tem muito de traiçoeiro. Fiz minha estréia contra o Fluminense, num domingo, a torcida do Olaria era pequena, a gente só enxergava torcedores do Fluminense nas arquibancadas. Pensei comigo: Quero jogar num clube assim… Se atuasse bem, o time talvez se interessasse. Tive um desempenho razoável, era uma estréia, no fundo estava nervoso. O Olaria ficou em sétimo no campeonato carioca, e acabei recebendo uma proposta de transferência. Fui contratado pela Portuguesa Santista, onde fiquei durante cinco anos…
– Você era atacante?
– Lateral direito – o enfermeiro respondeu. – Fui atleta da Portuguesa Santista até os vinte e três anos, só que aí, então, houve atrasos de salário, e eu consegui uma transferência para o América Mineiro. No segundo ano de clube, fiz um campeonato brasileiro realmente muito bom. Muita gente andava dizendo que eu estava negociado com algum time paulista, e eu pensei mesmo que existia interesse. Um empresário me aconselhou a deixar o América e ir correndo para São Paulo. Me disse que estava tudo acertado com o Palmeiras, que bastava somente assinar o contrato. Pois eu segui o conselho dele e acabei me dando muito mal. Rescindi com o clube de Minas, e só quando cheguei a São Paulo é que descobri que aquela promessa do empresário não se cumpriria. Fiquei sem contrato praticamente durante um ano. Se soubesse o meu desespero… Uma equipe da segunda divisão do campeonato baiano, enfim, aceitou me contratar, e ali fiquei até parar em definitivo.
– E depois?
– O dinheiro que ganhei atuando no futebol desapareceu muito rápido, e eu precisava sobreviver. Fiz um curso de enfermagem, e comecei a trabalhar na área.
Laerte alçou a barra da calça até o joelho.
– Ainda tenho cicatrizes das pancadas que levei em campo. Olha só…
Ele mostrava com certa satisfação, embora Suzi sentisse algum acanhamento ao testemunhar o único legado de tanto esforço empreendido. Laerte quase atingia os quarenta anos, e, na realidade, aparentava até mais idade. Seus cabelos crespos, de corte baixo, revelavam-se brancos nas têmporas, e o porte atlético dos tempos esportivos só se denotava muito ligeiramente. Várias vezes, ao se expressar, cobria a boca com insistência, e Suzi desconfiou que lhe faltassem os dentes do fundo. Porém, como havia escurecido no terraço, ficava complicado ter certeza.
– E você? – ele interpelou. – Sabe o que quer da vida?
– Conclui o curso recentemente. Penso em crescer, é natural. Pretendo atender em duas ou três clínicas, e talvez assim arrumar dinheiro suficiente para abrir um espaço que seja somente meu. Sou ansiosa, às vezes. Sei que é meio esquisito, pois trabalhar com massoterapia significa exatamente produzir relaxamento, mas nasci assim. No fundo, só o que desejo é ficar bem.
– Ficar bem?           
– Exato.
– E está se sentindo bem neste trabalho?
– Ontem, ao chegar, estava tensa. Creio que a figura do Kamal causou nervosismo em mim.
– Ele é um bom sujeito.
– Pode ser – disse Suzi. – Mesmo assim, tive dificuldades para dormir depois.
– Precisa de calmantes, nesse caso.
– Jamais usei comprimidos.
– Tenho amigos que trabalham em hospitais, e eles me fornecem remédios, às vezes. Se quiser, posso te oferecer.
Suzi não se opôs.
– Tudo bem.
Laerte dirigiu-se ao cômodo em que se encontrava hospedado, e trouxe duas caixas. Suzi enfiou-as rapidamente no bolso da calça, e agradeceu.
– Tome somente meio comprimido por vez – aconselhou o enfermeiro. – É o suficiente.
– Preciso ir descansar. Se tiver realmente uma noite de sono satisfatório, trabalharei com mais disposição.
– Amanhã à tarde, depois do seu atendimento, a gente pode fazer uma caminhada até o rio que passa dentro da propriedade. São vinte minutos de distância, é tranquilo.
– Seria ótimo – Suzi concordou, antes de se despedir.



3.



Contrariando Laerte, tomou o comprimido inteiro, e dormiu rapidamente depois. No dia seguinte, as sessões de massoterapia pareciam ter conquistado notoriedade entre os hóspedes e, para seu espanto, crescera o número de atendimentos. Suzi quase não teve descanso. Quando encerrou o expediente, sentia-se profundamente fatigada, e ao projetar os dias que sobreviriam, decerto nesse mesmo ritmo, não conseguiu evitar que o corpo se enrijecesse sob o efeito da tensão. Precisava descobrir um modo de controlar aquela terrível ansiedade.
– Dormiu direito? – Laerte quis saber ao encontrá-la.
– Como uma pedra. Por outro lado, os hóspedes fizeram fila o dia todo, nem sei exatamente quantas massagens precisei fazer. Estou exausta.
– Precisa relaxar. Vista roupa de banho, e vamos até o rio de que falei.
– Só um instante – disse Suzi, voltando minutos depois com vestimentas mais leves, e biquíni por baixo.
Caminharam até os limites do hotel fazenda, e depois de contornarem uma colina, finalmente chegaram ao rio. Os hóspedes preferem as piscinas, disse Laerte, quase nunca vêm a este lugar. Suzi ficara um tanto indecisa com a força da correnteza, entretanto, ao perceber que estava distante de ser caudalosa, decidiu arriscar-se. Guiada pela mão de Laerte, equilibrou-se sobre as rochas escorregadias da margem, e mergulhou na água. Sentiu-se arrepiar imediatamente. Está gelada, falou, e o outro redarguiu: Logo o corpo acostuma. Ele tinha razão, em breve habitou-se, e chegou mesmo a apreciar. Conservar-se em pé exigia alguma perícia, pois o fundo era também rochoso, e a todo o momento Suzi vacilava, necessitando agarrar-se ao dorso mulato de Laerte. Sempre que acontecia, os dois riam. Depois de certa hesitação, ele deslizou o corpo da jovem até envolver sua cintura, e assim ambos se mantiverem grudados. Pertinho de mim você fica mais firme, justificou-se. Suzi não recusou aquele contato. Poderia afastar-se delicadamente, e isso talvez não fosse interpretado como menosprezo, no entanto, recordou-se da ansiedade padecida durante os últimos dias, e supôs que o sexo aliviaria completamente a tensão.
Regressando ao edifício da administração, despediram-se, e Suzi recolheu-se ao cômodo privado, novamente se desobrigando de frequentar a refeição coletiva. Sentia-se em dúvida acerca da atitude tomada no rio. Parecera-lhe, em princípio, boa oportunidade descontrair-se fruindo as benesses da satisfação sexual, mesmo tão casualmente, e na companhia de um simples colega de trabalho. Porém, tanta convicção desvanecera-se, e se houve, de fato, qualquer descontração momentânea, de novo havia cedido espaço à ansiedade. Deitou-se na cama, após o banho, e tentou esquecer o problema. Como isso não era fácil, ingeriu um dos comprimidos entregues por Laerte, e notando que o efeito não se demonstrava imediatamente, engoliu outro na sequência. Necessitava forçar o descanso naquela noite, e com dois calmantes dentro do organismo, obteve o resultado.


4.



No salão de jogos, alguns idosos reuniam-se até a madrugada disputando partidas de buraco. Naquela ocasião, depois de quatro ou cinco rodadas, sucedeu ali um tumulto: alguém desmaiara muito subitamente. Haviam chamado o enfermeiro, e este buscou, em vão, reanimar a pessoa utilizando-se de massagens cardíacas. O dono do Solário solicitara o resgate, e assim que a ambulância estacionou, paramédicos colocaram o paciente em respiração artificial, e o transferiram ao pronto-socorro. Não obstante, a situação era mesmo irreversível. Somente na manhã seguinte, encontrando Kamal no refeitório, durante o café, Suzi teve notícias a respeito daquele acontecimento.
– Escute, ocorreu um problema ontem à noite: um dos hóspedes morreu.  
– Tá falando sério?! – ela se assustou. 
– Pois é. Sofreu um enfarto fulminante. Nós tentamos reanimá-lo, mas era tarde. Faleceu a caminho do hospital. 
– Mas… e agora? 
– Estou me esforçando para manter a situação sob controle. Os demais hospedes se mostraram desnorteados, é natural, mas costumo receber grupos de idosos constantemente, e veja bem, isso acontece, às vezes. Parece muito triste dizer a coisa dessa maneira, no entanto, sei do que estou falando… Tudo acabará se tranquilizando novamente, pode acreditar. 
– Devo abrir a sala de massagens? 
– Sinceramente, não acredito que essas pessoas estejam com disposição para distrair-se no dia de hoje, mas penso ser importante conservar todas as atividades do hotel em funcionamento normal. 
Kamal afastava-se quando Suzi questionou: 
– Como se chamava o hóspede? 
– Terêncio. 
Havendo escutado o nome, também Suzi se sentiu desnorteada. Pareceu-lhe inacreditável que justamente aquele sujeito tão bem humorado, e de compleição saudável sucumbisse de modo assim inesperado. Duvidou, no começo, mas Kamal demonstrava ser um indivíduo responsável, alguém que não se enganaria com tamanha facilidade, e nem tampouco tentaria ludibriá-la. Passou o dia todo encerrada na sala de massagem sem receber sequer um hóspede. Foi mesmo terrível. Contrariando o clima causado pelo acontecimento nefasto, o céu estivera aberto, e o sol refulgira intensamente até o esmorecer da tarde. Os bangalôs mantiveram-se ocupados, e pouquíssimas pessoas arriscaram-se a exibir-se caminhando pela propriedade do hotel fazenda. Suzi trancou a porta da sala às quinze horas rigorosamente, e seguiu pela trilha de seixos até o edifício da administração. Chegando próximo, avistou Laerte acercando-se do mesmo local, e antes de ser flagrada, tomou o rumo contrário, distanciando-se dele.  
Conquanto Suzi houvesse enredado a si mesma em pensamentos acerca da morte inusitada de Terêncio, ao dar-se com a presença de Laerte, foi acometida novamente pelo constrangimento que lhe causava recordar-se da loucura ocorrida no dia anterior. Padeceu quase imediatamente um conflito de sensações. Sob o pretexto de mitigar o estado de ansiedade que caracterizava sua natureza, entregara-se de maneira leviana àquele desconhecido, e agora se sentia bastante decepcionada. Havia na figura de Laerte certo ar desolador: fracassara totalmente na vida, e o trabalho no hotel fazenda era um desfecho demasiado triste. Suzi preferia honestamente não ter imergido naquele poço de águas turvas e suspeitosas do sexo casual. Guardava tantas expectativas no coração. Sabia-se jovem, e desejava crescer em inumeráveis sentidos, principalmente como massoterapeuta, talvez conquistando, no futuro, a oportunidade de inaugurar seu próprio negócio. Sentia-se uma verdadeira imbecil naquele exato momento. Chega de pensar nisso, tentou convencer-se. Outra circunstância mais relevante ocorrera, e seria bastante desrespeitoso revolver aquelas picuinhas pessoais.      
Somente no segundo dia posterior ao acontecimento, Suzi recebeu, enfim, uma hóspede na sala de massagens.  
– Pensei mesmo que não encontraria outras pessoas aqui… – confessou a senhora, ao notar o ambiente vazio. – Quero dizer, considerando o que aconteceu. Foi mesmo triste. Pobre do Terêncio! 
– Pois é. Sabe que tive a chance de conhecê-lo? Parecia ser muito animado. 
– E era. O nosso grupo é bastante numeroso, mas nem todos se conhecem com a mesma intimidade. O Terêncio era dos únicos que sempre se dava bem com todos.  
– Creio que vocês estejam mesmo chocados. 
– Chateados, eu diria – a outra corrigiu. – Somos idosos, minha querida, e sabemos que esse tipo de coisa pode suceder a qualquer momento. Fazer o quê?
– A senhora… não sente receio? 
– Prefiro não pensar tanto assim nesse assunto. Talvez eu me conforme com mais rapidez, isso eu não escondo. Mas se você quer saber, querida, acredito que os outros se resignarão também. 
– A maioria ainda se encontra escondida nos bangalôs. 
– Por hoje, meu bem. Mas eu repito que um sentimento dessa natureza, entre nós, também tem seus limites. Amanhã tudo retorna à mesma rotina.
Submetendo-se às técnicas aplicadas por Suzi, a senhora quase adormeceu enquanto recebia a massagem. De início, a profissional estimulou os pontos meridianos do tronco e das mãos, em seguida deslizou o toque à cabeça, e depois disso ainda aos pés até regressar novamente ao tronco. Suzi sentia-se bem ao constatar como as pessoas relaxavam facilmente. Seria ótimo se eu também conseguisse relaxar dessa maneira. No entanto, mesmo sendo capaz de causar tamanho descanso nos outros, a si mesma nunca conseguia desobrigar-se da ansiedade.    

5.

Suzi hesitou bastante em acreditar naquilo que haviam afirmado: as coisas voltariam à normalidade. Porém, acabou aceitando que até mesmo a morte exerce efeitos passageiros e declinantes, e a rotina, embora seja abalada num dado momento, em tempo breve reconstrói-se, com certa timidez no começo, é verdade, entretanto, reconquistando aquela firmeza original e supostamente definitiva. Todas as atividades disponíveis no hotel fazenda Solário voltaram a atrair os hóspedes, e no corredor que conduzia à sala de massoterapia formou-se a fila costumeira. Durante o almoço, Suzi dirigiu-se à região próxima às piscinas, e constatou a algazarra barulhenta. Passado o luto de um dia e meio, eis que a vida ali se impunha forçosamente.
Manteve-se constante na decisão de evitar novos encontros com Laerte, e ansiava que também ele não insistisse. Mesmo que Laerte batesse à porta do cômodo particular, Suzi não cederia. Temia, no entanto, que o ato irresponsável tivesse consequências ainda mais incômodas. E se eu engravidasse desse sujeito, afligiu-se. Ela mal o conhecia, e o sexo ocorrera meramente como uma tentativa de se descontrair, uma válvula de escape, uma forma de aliviar a tensão habitual. Se ficasse grávida, de fato, estaria ligada a quem não correspondia às suas expectativas. Pensando nisso, dirigiu-se ao escritório da administração em busca de Kamal.
– Será que alguém poderia me dar uma carona até o centro de Atibaia?
– Mais tarde eu mesmo vou. Preciso fazer algumas compras. Necessita de algo específico? Posso trazer.
– Quero ir ao Posto de Saúde.
– Se quiser chamo o enfermeiro?
– Prefiro o Posto de Saúde – ela disse, retraída.
– Tudo bem, então. Te aviso quando eu estiver saindo, e vamos juntos.
Suzi agradeceu. 
 – Tenho que passar no supermercado, na loja de ferragens e no posto de gasolina – comentou Kamal, ao chamá-la tempos depois. – Preciso de pouco mais de duas horas, e acredito que, em seguida, estarei preparado para retornar. Use esse tempo como quiser. 
Guiando uma Toyota Hilux, Kamal deixou o hotel fazenda em direção ao centro de Atibaia. Durante o caminho, Suzi manteve sua posição retraída, enquanto ele atentava unicamente para a estrada, os músculos do semblante inertes, denotando assim uma expressão enrijecida e, ao mesmo tempo, compenetrada. Chegando ao destino, estacionou o automóvel temporariamente perto do Posto de Saúde, e disse:                                                                   
– Logo adiante existe uma praça. Eu encontro você ali quando terminar. 
O folheto que Suzi recebeu no Posto de Saúde junto com o medicamento informava que a pílula do dia seguinte era um contraceptivo de emergência, cuja função consistia em impedir o encontro do óvulo com o espermatozoide. Jamais utilizara aquele remédio, contudo, estava ciente de que algumas pessoas não concordavam com aquilo, entendendo tratar-se de um método verdadeiramente abortivo. Leu o folheto inteiro e, talvez porque faltassem ali dados mais consistentes, também ela admitiu carecer de qualquer conclusão definitiva a respeito do assunto. Mas como se sentisse angustiada, escolheu arriscar a sorte. Engoliu a pílula no banheiro do Posto de Saúde com um copo d’água fornecido pela funcionária. Problema solucionado, pensou, descartando o risco da gravidez.  
Havia tempo disponível até reencontrar-se com Kamal, e caminhando pelo centro, Suzi decidiu entrar em uma adega onde comprou uma garrafa de tequila. Se o objetivo fosse mesmo conservar distância de Laerte, melhor seria que ela garantisse a sua provisão particular de bebida.  
– O tempo foi o suficiente? – questionou Kamal quando se encontraram.  
– Foi. 
Subiram na Toyota, e ele demonstrou-se menos circunspecto no retorno.  
– Parece que os hóspedes assimilaram razoavelmente bem o acontecimento – ele disse.
– Isso me deixou um tanto surpresa. 
– Por quê? 
– Sei lá. Uma morte deveria causar maior impacto.
– Vou te dizer uma coisa, Suzi, na verdade as pessoas preferem esquecer rapidamente situações assim. Não que sejam insensíveis à morte. Elas não são. Mas todos sabem que aquilo naturalmente pode suceder conosco a qualquer momento. Sou cristão… – confessou, mostrando o crucifixo no pescoço. – … mas não sou ingênuo. É impossível despistar, de modo indefinido, o fim da existência. Os hóspedes necessitam regressar à rotina de distrações para que não se angustiem demasiado.
 – Pode ser. 
– Você crê em Deus?
 – Sinceramente essa questão nunca me incomodou. 
– E a morte, não te incomoda?
 – Isso talvez. Só que, sendo jovem, não quero me angustiar antecipadamente.
 – Por ora não me parece tão incomum que você pense assim – concordou Kamal. – Só que o tempo sempre traz preocupações desse tipo.
Suzi notou que ele carregava diversas caixas na carroceria do automóvel. Tudo se destinava provavelmente ao funcionamento do Solário.  
– Desde quando é proprietário do hotel fazenda? 
– Tem sete anos. Fui militar antes disso, durante trinta anos, a serviço da nação em diversas funções. Fui mandado em missão às fronteiras brasileiras, trabalhei como pacificador, e me designaram também para auxiliar em hospitais do exército. Solicitei minha exoneração, e com o dinheiro que havia guardado pude comprar esse terreno onde construí o Solário.  
– Nunca se casou? 
– Sim, casei. Mas fiquei viúvo. Isso faz quinze anos. E você? Pretende se casar?
– Um dia, quem sabe. 
– Se Deus quiser, você encontrará a pessoa certa – disse Kamal, afagando cordialmente a mão da moça.

6.

Suzi dormiu durante seis horas seguidas, sentia-se exausta, e ao acordar, tempos depois, constatou que havia perdido o horário da refeição. Ingeriu algumas barras de cereais que carregava na bolsa e, deitada na cama, meditou acerca de um acontecimento específico. Cogitava a hipótese de ter existido certo interesse insinuado na carícia que Kamal ofertara sutilmente. Sua atitude era séria e responsável, causando nela, de início, excessivo respeito, como se fosse capaz de acossá-la. Porém, durante a conversa no automóvel, Suzi teve a impressão de haver surgido, entre os dois, vestígios de uma inegável empatia. Sem dúvida, tratava-se de um homem cujas características pareciam-lhe interessantes. Provavelmente se acercava dos cinquenta anos, tinha conquistado uma situação financeira estável, e os traços fisionômicos, rigorosamente masculinos, transmitiam-lhe bastante segurança. Caso ambos viessem a se envolver, isto decerto não iria desagradá-la.
Tão cedo dificilmente retornaria ao sono. Será que a tequila me causará algum mal, intrigou-se, evocando o fato de haver ingerido a pílula. Mesmo sem conhecer a resposta, decidiu arriscar. Tomou dois tragos, recolhendo com a língua o resto da bebida que umedecera os lábios. O corpo aqueceu-se automaticamente, e Suzi animou-se, conquanto não houvesse outra perspectiva naquela noite senão permanecer nos limites do hotel fazenda. Lastimava constatar que estivesse ali sozinha. Seria realmente maravilhoso ter companhia… Bebendo outra dose, trajou rapidamente um vestido leve e, calçando sandálias, ousou deixar aquele cômodo com o objetivo de fruir a atmosfera noturna. Seguiu o caminho de seixos deixando-se guiar somente pela claridade da lua. Todos os bangalôs encontravam-se escuros, com os hóspedes já recolhidos, até aqueles que, à noite, costumavam disputar o carteado. Sorver o ar puro era gratificante, entretanto, o desalento que lhe causava estar sozinha recrudesceu ao perceber o Solário tão silencioso. De regresso ao edifício da administração, subiu as escadas em direção ao terraço, de onde conseguisse talvez vislumbrar os contornos da colina que fronteava o terreno. Parou no último degrau ao escutar os cochichos dali provenientes. Pouco antes de recuar, e descer celeremente sem ser surpreendida, conseguiu discernir o timbre de Laerte e outro de sonoridade feminina. Sem atinar precisamente com o motivo, desagradou-lhe que o enfermeiro se encontrasse com outra mulher. Mantinha-se firmemente decidida a não se envolver outra vez, e caso Laerte viesse a procurá-la, com certeza se desvencilharia. Não obstante, tal descoberta deixou-a conturbada.     
Pela manhã, Suzi atendeu os hóspedes na sala de massoterapia. Padecera náuseas e dor de cabeça todo o tempo, sendo necessário ir diversas vezes ao banheiro com o intuito de vomitar. Lendo a bula do medicamento ingerido no dia anterior, soube que aqueles sintomas sucediam-se ocasionalmente em seguida ao uso. Sentiu-se também bastante deprimida. Com o sol brilhando intenso – mesmo no fim da tarde –, as piscinas continuavam abarrotadas, e passeando pela área interna do hotel fazenda depois do expediente, ouvindo ali perto a algazarra dos idosos na água, Suzi percebeu que se encontrava em situação discordante com aquele meio. Tudo ao redor ignorava completamente sua ansiedade, os efeitos que lhe causara o uso daquela pílula, a tristeza de achar-se tão solitária, e inclusive a morte de Terêncio… Sim, até isso pensava ter sido definitivamente esquecido, conforme lhe asseguraram que aconteceria. Pouco antes da refeição noturna, comeu um sanduíche na cozinha do Solário, e retirou-se ao cômodo discretamente. Bebeu três doses de tequila, e tencionando acostumar o corpo à sonolência, ingeriu dois daqueles calmantes que o enfermeiro ofertara. Muito rapidamente foi tomada pelo torpor, e adormeceu quase sem perceber. 
 – Soube que alguém teve uma indisposição na piscina – Suzi encontrara Kamal no dia seguinte, e comentara o fato que descobrira durante a manhã.
 – Sim, uma idosa.
 – O que houve? 
– Problemas de alimentação, eu suponho. Fui vê-la no bangalô agora… ela ma parece melhor. Tive que chamar o resgate porque no momento não encontrava o enfermeiro. 
– Estava de folga? 
– Na realidade, deveria ficar na enfermaria, mas ele me disse que precisou atender uma das funcionárias… 
– Na administração?
 – No cômodo de dormir. Parece que a moça despertou com enxaqueca. 
– Isso te parece conveniente? – Suzi insinuou.
 – O quê?
 – Sei lá, acredito que os dois, sozinhos, em um cômodo privado poderia suscitar comentários maldosos.  
– Laerte nunca me causou problemas. 
Suzi respirou profundamente.  
– Se você diz.  
– Por que isso te causa receio, Suzi? O Laerte alguma vez tentou incomodá-la?  
– Como assim? A mim nunca – despistou. – É que… não me compreenda mal… eu não sou de bisbilhotar os outros, mas ontem à noite subi ao terraço da administração, e acabei escutando Laerte se divertindo com uma garota. Sabe, Kamal, as pessoas se acostumam rápido com incidentes como os que aconteceram aqui, mesmo assim  penso que você deveria ter mais cuidado… digo, o enfermeiro precisa estar sempre a postos! Se por acaso se descuida, se não se concentra direito, se comete um equívoco fatal, isso é bem capaz de cair na sua conta. 
O semblante dele contraiu-se de imediato. Sempre existira muita gravidade naquela expressão masculina, aquilo realmente parecia ser marca característica, como se tudo o que houvesse de responsável em Kamal ficasse registrado de modo visível, no entanto, ao escutar as palavras de Suzi, tornou-se evidente que a seriedade habitual se exacerbava. Despediram-se, em seguida, e a massoterapeuta refletiu sobre aquilo que fizera. Sabia ter lançado suspeitas sobre o comportamento do enfermeiro, decerto porque ainda se achava contrariada com a situação ocorrida entre ambos. Se lhe fosse possível, escolheria não cruzar novamente com Laerte dentro daquele hotel fazenda.

7.

– Os hóspedes irão embora amanhã após o almoço – disse o proprietário no penúltimo dia. – Realizo o pagamento dos funcionários logo em seguida, e, se desejar, te ofereço uma carona até a rodoviária. Assim, economiza o dinheiro do táxi.
– Eu aceito a carona – Suzi ainda se recordava da carícia no automóvel. – Você é um sujeito legal. – Procuro ser justo. Depois daquilo que você falou, sobre o comportamento do Laerte, eu refleti… Suponho que o melhor seja dispensá-lo. 
 – Sério?  
– Será o adequado. Honestamente, não sou o tipo de patrão que inspecione, a todo o momento, a atitude das pessoas. Mas entendo existirem limites.  
– Se isso te causa tranquilidade.
 – Certamente causa.  
Seria complicado, mas, se Suzi desejasse, Laerte certamente preservaria o trabalho. Bastava fingir-se indecisa acerca dos acontecimentos… Talvez não houvesse absolutamente nada entre o enfermeiro e a funcionária, diria ela, talvez tivesse confundido o significado dos murmúrios ouvidos no terraço, atribuindo demasiada malícia a um diálogo corriqueiro. Sim, isto se encontrava entre as possibilidades de que dispunha, entretanto, Suzi decidiu não se comprometer. Provavelmente ainda estava incomodada com aquela situação e, com toda a tristeza vivenciada nos dias recentes, sentia a necessidade de se aliviar novamente do nervosismo. Laerte que se arranjasse. Passado o almoço, no dia seguinte, assistiu aos ônibus encherem-se de hóspedes fatigados. Preferiu aguardar que os funcionários também se dispersassem, e só então Suzi desceu ao refeitório com o intento de se alimentar. Deparou-se com Kamal na cozinha. 
 – Cansada? – ele indagou. 
– Posso ser sincera?  
– Pode. 
– Estou exausta. Sério, e não somente porque o trabalho seja estafante, é que me inclino à ansiedade, e acabo tendo insônia, fico angustiada.  
– Por isso foi ao Posto de Saúde? – como Suzi se mostrasse encabulada, ele consertou. – Meu Deus do céu, é o tipo de pergunta indiscreta, eu não havia percebido. Ocorre que fico preocupado com tudo: mantimentos para o Solário, bem-estar dos hóspedes, dos funcionários. 
– Sei disso, eu observei que você é um homem responsável – suspirou. – Fui ao Posto de Saúde porque precisava tratar de um problema feminino. 
– Me desculpe tanta indiscrição. 
– Eu não ligo. 
– Penso que a morte de Terêncio tenha agravado seu estado de ansiedade. 
– Pois é. Talvez você esteja acostumado por ser mais experiente e controlado. Mas eu não. Sei que sou uma pessoa ainda muito frágil, entende? 
– Sim, eu entendo. Mas, me diga, sente-se menos ansiosa neste momento? 
Suzi não sabia exatamente como responder a ele. Tentara desvencilhar-se de suas aflições, durante aqueles dias, ingerindo soníferos, consumindo álcool, entregando-se à casualidade do sexo, descartando a possibilidade da gravidez inoportuna, isolando-se em solidão, e delatando o enfermeiro, não obstante, percebia ainda a musculatura dos ombros enrijecida, a respiração sufocada, todos os sintomas da ansiedade ainda existentes. Tão diferente dela, Kamal parecia-lhe estável e suficientemente capaz de manter o controle das situações. Sua atitude de firmeza inesgotável, os olhos sóbrios, a estrutura física decerto conservando a mesma rigidez dos tempos de militar, tudo lhe transmitia proteção. Se ele a envolvesse nos braços naquele instante, se isso acontecesse, de fato, talvez Suzi pudesse confessar a verdade. Talvez se acalmasse, enfim, e acolhida naquele abraço protetor decerto conquistaria a serenidade de que tanto necessitava. Por esse motivo, forjou uma expressão suplicante e, sem disfarçar o tremor na voz, disse:– Uma mulher só fica realmente tranquila quando tem ao lado um homem de verdade. Um homem como você, por exemplo.  
– Como eu? Bem… Sou o tipo de sujeito que sabe não somente resolver os problemas, mas sabe também perfeitamente evitá-los – naquele mesmo instante percebeu o interesse de Suzi, e manteve-se rigoroso. – Sou quase trinta anos mais velho do que você, e Deus conhece as dificuldades que enfrentei até o momento. Talvez você ignore, certamente ignora, as vantagens de haver vivido tanto ou o suficiente para não se transformar em refém das circunstâncias. Ao construir esse hotel fazenda, realizei um sonho antigo, e garanti um futuro tranquilo. Quando eu fui militar, cheguei a servir o Brasil na floresta amazônica e, garota, você não tem sequer idéia de quantas dificuldades enfrentei. O ambiente é hostil, e às vezes temos que combater, inclusive, traficantes e guerrilheiros colombianos. Isto certamente dá consistência real ao meu caráter, e auxilia a descartar ilusões. Posso me casar novamente, sei lá, a vida tem muito de inesperado, mas se acontecer, eu acredito que darei preferência às mulheres maduras.Retirou do bolso diversas notas enroladas e presas com elástico, entregando a Suzi em seguida.– Seu salário. Pode conferir, caso queira.
 – Não é necessário.
 – Você está se sentindo bem? 
– Estou – ela mentiu. 
– De repente você empalideceu… 
– Tenho comido pouco. Se não houver problema, vou fazer um sanduíche. 
– Fique à vontade – concordou Kamal. 
– Olha só, eu tenho que cuidar dos animais. Retornando, dou aquela carona que te prometi.
 – Obrigada.
Suzi sentia-se desprezada, e assim que o homem se distanciou, vendo-se sozinha novamente, decidiu retornar ao cômodo.

8.

Hesitou entre acondicionar todas as coisas na maleta, em um processo de despedida melancólica do Solário, e tomar um derradeiro trago de tequila. Sinceramente, Suzi não se achava em condições de assimilar todos os acontecimentos situados naqueles dez dias. Tinha chegado ali trazendo consigo as expectativas características de sua juventude. Tantas esperanças! Mas, de fato, era somente uma garota ansiosa dando as primeiras passadas, ainda demasiado titubeantes, na profissão e na vida. Se fosse ver, só então encarava, da pior forma possível, a realidade de que as técnicas aprendidas no curso de massoterapia não eram suficientes, não a tinham preparado para mergulhar em determinadas situações. Situações duras e, contudo, inevitáveis. O golpe definitivo viera somente no instante final: ser descartada pelo proprietário daquele hotel fazenda. Sua ansiedade evoluíra, assim, no sentido de um profundo vazio interior.
Subitamente, foi tomada por um impulso, e, sem controlar as lágrimas, encheu a mão com os calmantes entregues por Laerte no segundo dia. Conquanto nunca lhe houvesse ocorrido pensar em tal decisão, Suzi notara, naquele instante, que alguma coisa dentro de si mesma se quebrara, dissociara-se da pessoa que costumava ser, e concluíra que simplesmente não era possível abandonar o Solário de retorno à antiga existência. Não havia mais aquela antiga existência, afligiu-se. Ou, quem sabe, houvesse alguma existência semelhante, entretanto, não teria condições de se adaptar àquilo. Tomou os comprimidos – todos eles! –, esvaziando a garrafa de tequila, e, em seguida, estirou-se na cama. Só queria ser coberta rapidamente pela sonolência, mergulhar as angústias em um esquecimento onde sua sensação de vazio desaparecesse. Quando Kamal voltasse, mais tarde, tudo estaria finalmente consumado. Sim, tudo, balbuciou antes de adormecer.      
Kamal alimentara touros e avestruzes, e encontrava-se agora averiguando o estado físico de uma égua prenha. O animal reagia placidamente ao contato, como se devotasse confiança plena aos cuidados deles. Preferia tratar pessoalmente dos animais, e mesmo no caso daquela égua, só decidiria chamar um veterinário em certas situações de extrema gravidade. Tinha bastante experiência para administrar as coisas do Solário sem se confundir. Com a partida de hóspedes e trabalhadores, tudo ali imergia em uma pasmaceira desoladora. Pensou novamente naquele hóspede que havia morrido. Durante sua vida, Kamal tivera a oportunidade de testemunhar muitas mortes, e sabia perfeitamente que isso costumava causar um hiato na realidade. Um verdadeiro vazio. Se as pessoas não preenchessem rapidamente tal vazio, terminavam sendo engolfadas. Embora se esforçasse por agir de modo pragmático, Kamal dispunha de sensibilidade suficiente para não se contentar com esse tipo de acontecimento. Tomava as providências necessárias para resolver o problema, mas era natural que a morte sempre espalhasse alguns vestígios.
Recordou-se de Suzi, então. Flagrara no semblante dela, ao se afastarem, algo diverso da mera ansiedade. Bem no fundo, pensou, certamente ela padecia algum tipo de angústia. Conhecia o espírito juvenil, e não ignorava que gente daquela idade depositava total confiança em coisas passageiras. Mas o vento dissipa aquilo que é passageiro – inclusive a juventude –, e, de tudo, pouco sobeja. Pobre moça, disse Kamal, abastecendo de feno a baia da égua prenha. Provavelmente, Suzi nem sequer havia adquirido ainda o preparo necessário para enfrentar os conflitos humanos mais candentes, ele concluiu. Kamal precisava encerrar as tarefas, porém, notou que a massoterapeuta ia-se transformando, rápido, em uma espécie de idéia recorrente. Começou a sentir-se angustiado também, talvez porque adivinhasse os sofrimentos de Suzi, e quisesse conservar em si a responsabilidade por tudo o que sucedesse nos limites daquele hotel fazenda. Se não fosse possível se concentrar, melhor seria deixar os afazeres todos para o dia seguinte, e regressar ao prédio da administração.
Dirigiu-se ao cômodo em que Suzi estava alojada, e bateu insistentemente sem ser atendido. Pela fresta da janela, divisou a massoterapeuta em posição de aparente repouso sobre a cama, no entanto, completamente imune ao barulho. Pronunciou o nome dela algumas vezes: em vão. Tal imobilidade desagradou-lhe, e mesmo temendo invadir a privacidade de outra pessoa, achou mais prudente entrar no quarto utilizando a chave geral. Não demorou sequer três segundos para compreender a situação no interior do cômodo. Havia cartelas usadas de calmantes atiradas ao chão e uma garrafa vazia de tequila sobre o tapete. No rosto de Suzi testemunhou uma palidez cadavérica, mas o corpo não se encontrava totalmente gélido, e a respiração, embora muito tênue e imperceptível, não se tinha interrompido.
– Suzi, Suzi! Acorde, vamos… – exortou. Por um instante, ela entreabriu ligeiramente os olhos, sem conseguir firmá-los. Se Kamal tivesse, à disposição, um enfermeiro que o auxiliasse, prestaria os primeiros socorros ali mesmo. Sozinho, no entanto, seria realmente impossível. Segurou-a nos braços, então, e correu até a Toyota, colocando-a, meio inconsciente, no banco traseiro. Depois partiu ao hospital celeremente. Chegando ao destino, entrou na sala de atendimento às pressas, bradando: – Um médico, por favor! Ela se intoxicou… – Suzi foi colocada em uma maca, e desapareceu pelos corredores do edifício. 


9.


O médico era jovem e, além da barba cerrada e dos cabelos mal arrumados, exibia na face o cansaço oriundo das horas em vigília no atendimento.
 – Senhor Kamal? É isso, não é? Kamal é seu nome? Pois bem, disseram que o senhor trouxe a paciente…
 – Suzi.      
 – Sim, a Suzi.
 – Como ela está?
 – Consegui estabilizá-la. Tive que realizar uma lavagem intestinal quando chegou, e a paciente agora se encontra em repouso.
 – Ela ficará bem?
 – Por ora, acredito que sim. Mas foi por pouco.
 – Imagino.
 – Tentativa de suicídio, não é?
 – Exato.           
 – Nesse caso, preciso notificar as autoridades.
 – Conheço as regras. Sou militar reformado, e já trabalhei em hospitais do exército.
Emitindo um suspiro de exaustão, o médico falou: – Olha só, eu estou de plantão já tem quase quinze horas. Muito, muito cansado. Então se você se responsabilizar pela jovem, posso colocar no prontuário que a Suzi se intoxicou por acidente. Situações assim são complicadas. Digo, tentativas de suicídio. Se eu comunicar esse incidente, terei que conversar com os policiais, e isso é sempre fatigante. Para Suzi, é problema em dobro. O importante é que os parentes fiquem atentos.
– Nós não somos parentes. 
– Isso complica. 
– Ela vai precisar de um tratamento psicológico.
 – O serviço público oferece esse tipo de tratamento, porém, se ela puder arcar com os gastos de consultas particulares será melhor – o médico suspirou outra vez. – Mas se o senhor não é parente…  
– Fico responsável por ela. 
Mesmo não tendo qualquer vínculo próximo com Suzi, dela se apiedou. Enfim, isso vai ser mesmo um grande sacrifício, ele admitiu. Porém, se a moça enfrentasse o processo na justiça, Kamal tinha o pressentimento de que, no futuro, acabaria sucumbindo em definitivo. Solicitou vê-la, e o doutor condescendeu. Suzi se encontrava desacordada, e em seu semblante denotava-se ainda uma excessiva palidez. Kamal retirou, então, o crucifixo de seu próprio pescoço, e colocando-o cuidadosamente nela, disse, sem ser ouvido:  
– Será bom para você acreditar em alguma coisa, menina.

Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).

Nenhum comentário:

Postar um comentário