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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

A VOCAÇÃO E SEUS PERCALÇOS



Toda vocação consiste em uma aposta. De fato, não existe qualquer garantia de que ao segui-la ocorrerá o sucesso. O sucesso não é garantido, o reconhecimento também não, e, em última instância, nem mesmo a felicidade é garantida. A história mostra que muitos artistas, intelectuais, cientistas, etc., que decidiram seguir sua vocação morreram em estado de frustração. E aqui não estou aludindo às pessoas que traíram sua vocação ou então que preferiram enterrá-la. Refiro-me, especificamente, àqueles que não somente foram fiéis a ela, mas sobretudo realizaram algo de valioso. Mesmo estes muito frequentemente não encontraram o êxito esperado, nem tampouco a felicidade. A despeito disso, somos levados a acreditar que a vocação é o caminho que nos conduz a uma espécie de júbilo profundamente humano, acompanhado de aplausos. Contudo, não seria o caso de encarar a vocação como se encara o martírio?

Mesmo não oferecendo sempre o sucesso como recompensa, e a despeito de ser, às vezes, um peso difícil de carregar, há na vocação algo que nos coage a sacrificar em seu altar o melhor daquilo que somos. Suor e sangue. A essência da alma. As fibras de nossa musculatura tensa. Tudo isso empenhamos na esperança de saciar um impulso interior. E a miséria não se torna obstáculo. A doença também não. Aliás, nem tampouco a prisão consegue impedir o esforço aflito de trazer à tona todas as forças latentes da vocação. Nesse quesito, ou seja, no que tange ao sacrifício, o indivíduo que a ela se entrega aproxima-se bastante daquela virtude da santidade.

Dentre as experiências marcantes da minha vida, ter lido Recordações da Casa dos Mortos certamente está na escala das mais intensas. Neste livro, o autor relata os anos terríveis transcorridos no cárcere devido a uma condenação política. Na companhia de indivíduos com características violentas, no frio austero da Sibéria, Fiódor Dostoievski testemunhou sua vocação literária ser testada ao extremo. A descrição da angústia de um homem sufocado por um ambiente adverso, tendo sua liberdade usurpada, e necessitando proteger a todo custo o talento, oferece à obra tons magistrais. Foram a convivência com círculos intelectuais russos e a atividade subversiva contra o Czar a motivação de seu encarceramento, mas nem tamanha frustração conduziu Dostoievski a desistir de realizar sua vocação. Tendo sido libertado, anos depois, durante certo tempo esteve ainda proibido de publicar seus escritos. Faminto e doente, dependeu exclusivamente da boa vontade do irmão. A despeito de tudo isso, e vencendo as adversidades, produziu romances paradigmáticos como Crime e Castigo, Os Irmãos Karamazov e Os Demônios.

Também na prisão, o filósofo Boécio escreveu um memorável texto no qual personifica a Filosofia, servindo-se dela para se consolar. A tese central de Boécio é precisamente que, mesmo nas adversidades, a busca da Verdade necessita continuar sendo o sentido máximo da existência. Decerto o pensamento de Boécio lança luminosidade sobre o problema da vocação, pois a questão toda em seu trabalho reside na capacidade humana de transcender os limites físicos e circunstanciais através da elevação do espírito. Inclusive no cárcere, o filósofo encontra uma forma de aliviar os sofrimentos da alma através do conhecimento. No caso específico dele – e, contudo, não somente dele – isso constitui a vivência integral da vocação. Uma vivência que alcança ultrapassar os obstáculos e realizar algo de louvável apesar de todas as condições contrastantes.

Há existências humanas tão avessas ao impulso vocacional que sua experiência pode ser continuamente contraditória. Quando me refiro a isso não estou somente aludindo à natureza íntima do indivíduo, porém sim à sua situação externa. Por exemplo, cito os casos do pintor holandês Vincent Van Gogh e do escritor francês Léon Bloy. O primeiro vitimado tanto pela penúria quanto pela loucura, e o segundo refém de uma existência atribulada. Não houve para nenhum dos dois consolo mais benfazejo do que a arte realizada. Não houve o reconhecimento merecido em vida, e não se pode afirmar categoricamente que tenha existido mesmo a compreensão de seus pares. Porém, tais espíritos, sendo inquietos, não se vergaram tão facilmente diante das dificuldades, deixando como legado obras consistentes. Tê-los como exemplo de talento e persistência talvez seja aconselhável, entretanto, quantos desejam igualmente admitir as consequências negativas dessas biografias? Quantos suportariam estoicamente tantos sofrimentos em nome de um ideal superior? Nisto reside a verdadeira questão!

Por vezes, seguir a vocação é semelhante a caminhar no escuro, ou seja, trata-se substancialmente de um ato de fé. Crê-se em algo. Mas em quê? Isto quase ninguém consegue definir. Há diversas portas e algumas sugerem a possibilidade de se franquearem, mas o que sobrevirá a essa passagem? Outra solução não resta: se o indivíduo está intimamente comprometido, avança na expectativa quase religiosa de que seus esforços serão recompensados – de algum modo – senão nesta existência frequentemente ingrata, ao menos no acaso de uma posteridade gloriosa.


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