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domingo, 29 de outubro de 2017

MAIS PLATÃO, MENOS FACÍNORAS: OS LIMITES DA LIBERDADE ARTÍSTICA



– Caro Genésio, tendo analisado a questão proposta, ou seja, se as manifestações conservadoras a respeito dessa tal exposição de arte financiada tanto pelo capital estrangeiro quanto pelo erário público correspondem à relação entre opressor e oprimido, e qual dos setores se caracterizam como um e outro, acredito que seja também conveniente destrinchar a mesma temática analisando a situação dentro de uma perspectiva diferente.
– E qual será essa perspectiva, Agostinho?
– Refiro-me ao direito de liberdade de expressão que, nesta circunstância, alguns entendem ter sido violado.
– Parece adequado tratarmos realmente desse tópico, afinal, muitos artistas e formadores de opinião têm se posicionado contra algo que asseveram ser uma espécie de censura. De fato, devido às manifestações, houve o cancelamento da exposição, coisa que, a meu ver, atenta flagrantemente contra o estado democrático. Nesse sentido, os grupos conservadores se mostraram autoritários.
– Mas me diga, Genésio, você realmente supõe que não devam existir limites estabelecidos à liberdade artística?
– Suponho.
– Por que não?
– Porque eu acredito que toda a arte precisa expressar o mais amplamente possível a natureza humana. O artista não deve encontrar restrições à sua criatividade. Além disso, é necessário evitar que setores tradicionalistas tentem cercear o direito ao livre pensamento.
– Quando você define as coisas dessa maneira, caro Genésio, quero dizer, afirmando que a função da arte é expressar o mais amplamente possível a natureza humana, ocorre-me que talvez seja útil tentar compreender melhor o que exatamente significa tal conceito particular. Concorda em me auxiliar na tarefa de empreender essa espécie de investigação?
– Sem dúvida, Agostinho.
– Ótimo. Então, neste caso, seria possível a você elucidar o que caracteriza a natureza humana?
– Penso que se trata de uma questão filosófica de alta importância. Naturalmente bastante complexa, algo que me exigirá um esforço de meditação extremo. Mas não me furtarei a auxiliá-lo. Penso que a característica essencial da natureza humana consista na capacidade de raciocínio aplicada as circunstâncias da existência prática. Por exemplo, dentro da sociedade observamos como o ser humano busca utilizar seu intelecto com o objetivo de solucionar dificuldades inerentes à sua sobrevivência.
– Sua definição não me desagrada. Por ora, admito que a aceitemos e prossigamos. Se a natureza humana se caracteriza pela capacidade de solucionar questões práticas através do uso da razão, pergunto se os resultados advindos disso lhe parecem plenamente satisfatórios?
– Honestamente, às vezes tenho a nítida impressão de que existem demasiados problemas sociais a serem resolvidos, e nem sempre os seres humanos mostram-se capazes de aplicar sua capacidade intelectual no sentido de atenuar as coisas.
– Se sua colocação estiver correta, Genésio, teremos que admitir necessariamente que a capacidade intelectiva dos homens encontra determinadas limitações.
– É possível que isso seja assim.
– E de onde decorrem essas limitações?
– Provavelmente daqueles setores da sociedade que tentam impedir a todos o acesso aos direitos básicos.
– Mas, neste caso, você atribuiria a esse grupo específico algo que precede a construção social. Se estamos esquadrinhando as limitações da capacidade intelectiva, obviamente lidamos com um dado essencial da natureza humana. Logo, a edificação da sociedade e sua subdivisão em setores são decorrências daquilo que é essencial à natureza humana, e a capacidade intelectiva é um desses elementos essenciais. Posso evidentemente admitir que existam problemas na convivência entre os homens, e admito também que devemos investigar filosoficamente as origens dessas questões, contudo, não posso conceber, em contrapartida, qualquer solução de característica secundária. A subdivisão em grupos corresponde a um fenômeno secundário e, como tal, não responde a problemática primeira que estabelecemos, ou seja, as limitações da capacidade intelectiva das criaturas.
– E então como ficamos?
– Primeiramente devemos admitir duas coisas as quais temos já concluído: o ser humano é habilitado à intelecção e essa intelecção, no entanto, tem suas limitações. Disso se depreende que mesmo a virtude mencionada não é tão abrangente a ponto de ser considerada um bem absoluto. Que encontramos limitações durante esse esforço de saber a realidade, isso se manifesta naturalmente ao constatar-se a situação existencial do homem dentro do espaço cósmico. De fato, nenhum ser humano é plenamente hábil a ponto de esquadrinhar com sua capacidade intelectiva a integralidade cósmica. Os sentidos constatam aquilo que se encontra nos limites físicos do indivíduo, e ainda que este indivíduo em particular esteja se utilizando de um instrumento científico no intuito de estender as fronteiras de seu conhecimento, mesmo assim o foco estará direcionado a um ponto específico, e não à totalidade do universo. Compreender isso é concluir humildemente que a criatura tem limitações intrínsecas, e essa conclusão se mostrará relevante, a posteriori, quando tentarmos solucionar o mote de nossa discussão. No entanto, me diga, Genésio, quando eu afianço que o ser humano tem uma capacidade intelectiva essencial e, ao mesmo tempo, esbarra em limitações, o que acredita que isso gera?
– Suponho que uma espécie de conflito.
– Muito boa resposta, meu caro. Quando dois impulsos contraditórios atuam concomitantemente, disso nasce o conflito. O indivíduo que busca saber, e no caminho rumo ao conhecimento se depara com entraves do ambiente circundante e de sua própria constituição, encontra-se em uma situação conflitante. Por ora, eu questiono se será possível dar resolução a esse dilema?
– Penso que o engenho humano possa ser utilizado no sentido de resolver o assunto.
– Mas novamente retornaremos ao que já definimos, Genésio: o que chamamos de engenho é um atributo da capacidade intelectual dirigida à solução de dificuldades práticas, e como esta se confronta com limitações tanto extrínsecas quanto intrínsecas, certamente não poderá dissolver a questão referida.
– Parece um beco sem saída – lamenta Genésio.
– Provavelmente. Mas me responda, neste caso: o conflito entre a natureza humana e suas limitações manifesta-se unicamente no quesito particular mencionado ou encontramos outras formas de manifestação semelhantes?
– Somente me ocorre esse caso momentaneamente.
– Me diga, Genésio, não acredita você que esse conflito se realiza também no quesito da volição?
– Se você se refere ao fato de que a vontade do homem não é integralmente capaz de obter tudo aquilo que ambiciona, então sim, se realiza.
– E por que ela encontra limites?
– Creio que isto aconteça porque existem coisas que estão além da possibilidade da volição humana.
– Por exemplo?
– Diria que o homem não é capaz de viver eternamente na terra ainda que almeje. Existe a morte, e a morte impõe uma restrição que não é negociável.
– Observo que você atingiu o ponto essencial deste questionamento. Primeiro deduziu com correção que existem coisas que ultrapassam a vontade dos seres humanos. Nossa volição encontra-se necessariamente restrita ao poder que temos, e mais coisas conseguimos desejar conforme mais poder conquistamos. Porém, mesmo o indivíduo mais poderoso do mundo ainda não seria capaz de realizar a plenitude de sua vontade. Dá-se assim porque ainda este indivíduo em particular não deixa de ser muito semelhante em constituição a qualquer outra criatura. Como eu disse, limitado está pela estrutura corporal, pelo alcance dos sentidos, e também pela duração de sua existência. O seu querer, ainda que unido ao grande poder, é menor do que a realidade que o transcende. Significa que além da possibilidade humana, da natureza em si, existe uma situação real e transcendente. Logo, não é possível afirmar que a natureza humana seja ilimitada.
– Colocando-se dessa maneira, também concordo, Agostinho.
– Pergunto, então, caro Genésio: se nós concluímos que a natureza humana é limitada, poderia existir algo nela que gozasse de poderes ilimitados?
– Seria uma verdadeira contradição se houvesse algo de ilimitado dentro do que é naturalmente limitado.
– E se a natureza humana é limitada, pode-se supor que, nas ações correspondentes a ela, subsista o que seja considerado sem limites?
– Se já admitimos que o ilimitado não existe naquilo que é limitado, acredito que nenhuma ação humana possa ser ilimitada.
– Então, neste caso, Genésio, seremos obrigados a afirmar o que, inicialmente, você não se mostrava tão disposto, ou seja, a liberdade do artista não pode ser ilimitada se considerarmos que a natureza humana do mesmo artista é essencialmente limitada. Afinal, como você afiançou, caríssimo, seria uma verdadeira contradição se nós encontrássemos o ilimitado no que é limitado.
– Sua lógica faz sentido, Agostinho, e novamente você me surpreende com seus argumentos.
– Mas antes de abandonarmos definitivamente a questão, urge determinar o que é possível dentro dos limites dessa liberdade humana. Porque asseverar que algo não é ilimitado não significa dizer que seja também absolutamente restrito. Que a constituição existencial do artista – e de qualquer homem – não lhe faculte o direito à liberdade absoluta é uma coisa, outra distinta é impedir a correta utilização da liberdade que lhe é cabível.
– Concordo.
– Dentro das fronteiras da liberdade artística existem diversas possibilidades. Façamos, assim, um esforço no sentido de delinear essas possibilidades.
– Estou ansioso por auxiliá-lo nisso, Agostinho.
– Confiando que haja uma extensa, embora não ilimitada, liberdade artística, o que você consideraria servir como orientação satisfatória à liberdade referida?
– Penso que não exista somente uma orientação. Cada artista pode determinar a sua em particular.
– Porém, havendo muitas orientações em particular, conforme você sugere, como poderíamos nós avaliar as obras artísticas, a não ser que tivéssemos um critério válido para todas?
– Se há um critério válido para todas, isto significa que essa particularidade não é absoluta.
– Correto, Genésio. Logo, ainda que as obras apresentem sua peculiaridade, é necessário que, ao mesmo tempo, elas compartilhem características comuns. Se assim não fosse, sequer seríamos capazes de classificá-las como obras artísticas. Mas como elas possuem virtudes uniformes que as incluem dentro de um mesmo conjunto, então somos capazes de avaliá-las, e até mesmo compará-las utilizando um critério comum. Me diga, caro Genésio, você conseguiria me dizer qual característica deve ser considerada essencial a todos os trabalhos ditos artísticos?
– Posso supor inúmeras, mas se você solicita uma que seja assim essencial, não saberia arriscar.
– Não pensa então você que o artista, ao empreender seu trabalho, tencione atingir um nível no qual se sinta satisfeito?
– Sem dúvida.
– E aquilo que causa satisfação em alguém não deve ser definido exatamente como bom?
– Provavelmente
– Portanto, é justo afirmar que a característica comum e essencial das obras artísticas reside naquilo que todas têm de bom. Se o que é bom não fosse encontrado costumeiramente na arte, decerto não saberíamos determinar com clareza o que é arte e o que não é. Não obstante, como os artistas buscam realizar um bom trabalho, e como pretendem que a consequência de seu esforço redunde em uma boa obra, é natural admitir exatamente que aquilo a que se atribui o epíteto de bom seja elemento intrínseco ao labor artístico.
– Muito bem colocado, Agostinho.
– Contudo, o que exatamente devemos entender por bom?
– Penso que bom corresponda àquilo que a todos agrada.
– Seguindo essa lógica, caro Genésio, teríamos que concluir que o mau seja aquilo que a todos desagrada.
– Necessariamente.
– Mas, nessa situação, de que maneira compreender que a alguns indivíduos agrade aquilo que é ruim?
– Esse gosto tão peculiar pelo que é ruim sempre foi algo que eu não pude entender facilmente no ser humano.
– Admite então, Genésio, que não saberia responder com certeza essa questão?
– Admito.
– Da minha parte, tentarei encontrar uma solução que nos pareça razoável. Penso que os que apreciam o que é ruim acreditam, de alguma maneira, estar apreciando o que é bom. Ou seja, eles compreendem por bom aquilo que, em verdade, não o é. E comportam-se assim ludibriados pela própria ignorância. Mas na medida em que o ser humano adestra seu intelecto, consequentemente começa a distinguir com mais clareza o bom e o mau. Concorda, Genésio?
– Decerto que sim.
– Se nós concordamos, saberia me dizer de que modo isso se aplica à arte?
– Creio que a clareza de ambos os conceitos nos auxiliar a discernir melhor o que é bom e o que é mau em termos artísticos.
– Muito bem. Mas quando o artista se encontra em seu processo de criação, será que lhe acontece confundir os preceitos, e produzir uma obra má na suposição de ser boa?
– É possível, Agostinho.
– Penso que sempre que sucede assim, ocorre consequentemente uma espécie de crise em âmbito artístico. Pois se supõe que a arte deva oferecer necessariamente o bom como bom, mas quando ela oferece o mau como coisa boa, então se estabelece uma confusão que torna os critérios tradicionais ininteligíveis. Me diga, Genésio: as obras apresentadas na exposição mencionada causaram em alguns a impressão de não serem exatamente boas, não é mesmo?
– Sim.
– E a principal acusação foi a de terem ferido certos valores morais e também ofendido símbolos religiosos, estou certo?
– Certíssimo.
– Portanto, devemos entender que houve discordância com relação à qualidade artística daquilo que foi exibido.
– É verdade.
– Como o problema foi de ordem moral, sobretudo, sugiro que temporariamente deixemos a discussão estética. Neste caso, dirijo-lhe a seguinte pergunta: que relevância lhe parece ter a moralidade em âmbito público?
– Há quem defenda que socialmente é importante que os preceitos morais organizem as relações entre as pessoas. Mas há também quem se rebele contra o moralismo exacerbado.
– E qual das duas posições lhe parece ser a mais acertada, Genésio?
– Sempre tive a impressão de que o moralismo dos grupos tradicionalistas se revela hipócrita ao tentar esconder o fato de que a sociedade não necessariamente costuma seguir em seu comportamento os ditames da moral.
– Então você rejeita a moral?
– Nesses moldes eu rejeito.
– Porém, antes de rejeitá-la em sua totalidade, eu apreciaria saber se você não concorda que a moralidade tem características úteis e essenciais à sociedade.
– Por exemplo?
– Não será que essa moralidade a qual nos referimos é um componente exigido à manutenção da ordem?
– Talvez. Contudo, os movimentos sociais acreditam ser urgente transformar integralmente a ordem das coisas.
– E qual seria a finalidade disso, Genésio?
– Obviamente estabelecer a justiça.
– Mas seria realmente possível estabelecer a justiça nas relações da sociedade sem a existência do respeito?
– Provavelmente não.
– E ao estabelecer-se essa justiça isso não representaria também um estado de ordem?
– Decerto.
– Sendo assim, o anseio de estabelecer a justiça não pode estar em contraponto com o respeito e a ordem. Pois o que é justo exige conviver pacificamente com o que é respeitoso e ordeiro. Isto não lhe parece consequente, Genésio?
– Parece.
– E a moral não oferece à sociedade precisamente essa situação de respeito e de ordem?
– É coerente com o que você está expondo, Agostinho.
– Logo, se o que você deseja é a justiça social, ela só poderá se estabelecer na base do respeito e da ordem que são pressupostos básicos da moral. Ou seja, se existe um caminho para alcançar a justiça entre os indivíduos, esse caminho passa necessariamente pelo cultivo das virtudes morais.
– Não consigo encontrar qualquer falha em sua argumentação.
– Então me responda, caro Genésio: parece-lhe que a ofensa é uma atitude justa?
– De modo algum.
– E quem se sente ofendido tem o direito de se manifestar contra o ofensor?
– Certamente.
– E quando é desfeita a injustiça da ofensa pode-se asseverar que a ordem e o respeito se estabeleceram?
– É lógico deduzir.
– E considerando que a ordem e o respeito são pressupostos da moralidade, devemos concluir que sem a moral não conseguiríamos empreender a justiça na sociedade?
– Serei obrigado a concordar.
– Logo, a fim de termos uma sociedade justa, é imprescindível a existência da moral. Ela impõe a ordem e o respeito, permitindo uma convivência harmônica entre os homens. Mas não o faz sem que antes constitua limites nas relações entre as pessoas, afinal, para que sejam respeitados os direitos individuais, mostra-se necessário que todos se submetam a uma regra de conduta. Se assim não fosse, os limites seriam constantemente ultrapassados, ocasionando situações desrespeitosas, e a desordem ocasionaria a injustiça como consequência. Será que nós concordamos, Genésio?
– Sim, claro.
– Com isso, acredito ser possível afirmar que, além das limitações inerentes à natureza humana, o que também restringe a liberdade dos indivíduos – inclusive a liberdade artística – é a necessidade de sempre respeitar o direito alheio. Ora, se existem símbolos religiosos, e estes pertencem a um determinado círculo, é consequente afirmar que toda liberdade artística esbarra necessariamente no respeito ao que é próprio daquele círculo. Recorde-se que nós concordamos, caro Genésio, que a liberdade absoluta não existe dentro da constituição humana, e que, não obstante, há uma liberdade relativa, a qual tentamos esquadrinhar e cuidadosamente definir. Desse modo, afirmo que a conclusão acerca dos limites da liberdade artística resume-se no seguinte: sabendo-se filosoficamente que o ilimitado não convive naquilo que é limitado, aos artistas cabe o recurso de expressar-se buscando sempre o que é bom e satisfatório, sem que assim ofendam e causem injustiças contra as outras pessoas.
– Sem dúvida, parece razoável.

Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).


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