" " NOVA CASTÁLIA: HERMANN HESSE E A PSICANÁLISE

Curta a Página do Autor

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

HERMANN HESSE E A PSICANÁLISE




Quando um ramo do conhecimento começa a exercer influência dominante tanto na sociedade quanto na cultura, surgem manifestações artísticas variadas expressando o espírito dessa contribuição intelectual. Geralmente, a literatura exerce uma posição de destaque, legando obras relevantes que auxiliam na compreensão daquilo que é proposto como conhecimento. No caso da psicanálise, é um fato que deitou influência no pensamento de inúmeros escritores, no que tange à elaboração de enredos com características analíticas ou na criação de personagens psicologicamente complexos, ou ainda na crítica do trabalho literário como expressão da personalidade do autor. Sigmund Freud realiza esse tipo de estudo peculiar em seus escritos, atendo-se especificamente a Fiódor Dostoievski e William Shakespeare, assim abrindo uma interessante vereda de investigação para psicanalistas e críticos literários. Seguindo essa perspectiva, ainda atualmente existe a possibilidade de estender atenção às obras e à biografia de outros literatos, a fim de compreender como a psicanálise ali se faz presente, interpretando aquele terreno humano particular. 

Na metade do século vinte, sobretudo na Europa, a literatura estabeleceu laços firmes com a psicanálise na tentativa de explicar melhor a sociedade e a natureza humana. Uma obra de características poéticas e filosóficas como a do escritor germano Hermann Hesse não se furtou ao diálogo com o trabalho de Sigmund Freud em publicações ficcionais que lhe valeram o prêmio Nobel de literatura. Como um exímio perscrutador da alma, um cultor do autoconhecimento, e também um buscador da verdade, Hesse assimilou alguns elementos da psicanálise em seus enredos, como os impulsos instintivos do Id tentando exercer controle sobre a personalidade dos indivíduos, a investigação do inconsciente e a evocação das memórias infantis. A força das pulsões ou o poder do âmbito instintivo expressam-se em romances como O Lobo das Estepes e Demian. Com agudeza de análise, Hesse cria protagonistas que se encontram em uma região existencial de contraste entre os desejos obscuros e a luz da sabedoria, e trilham caminhos de autodescoberta através da vitória do elemento intelectual sobre os declives da personalidade humana. 


Para compreender melhor as dimensões existentes na obra de Hermann Hesse, é necessário discernir em suas páginas algumas referências marcantes que se manifestam em várias narrativas. Dessas referências, uma das mais corriqueiras é o dualismo estabelecido entre a vida superior – existência espiritual ou hemisfério intelectual – e o ambiente inferior da vida mundana, frequentemente uma existência relacionada a crimes e a obtenção frugal de prazeres. No prólogo do romance Demian, o autor descreve o ser humano da seguinte forma: Homem algum chegou a ser completamente ele mesmo; mas todos aspiram a sê-lo, obscuramente alguns, outros mais claramente, cada qual como pode. Todos levam consigo, até o fim, viscosidades e cascas de ovo de um mundo primitivo. Há os que não chegam jamais a ser homens, e continuam sendo rãs, esquilos ou formigas. Outros que são homens da cintura para cima e peixes da cintura para baixo. Mas, cada um deles é um impulso em direção ao ser. Como uma criatura cindida, o homem se vê colocado em uma circunstância de divisão, e tal divisão é proposta quando Emil Sinclair – o protagonista da trama – descobre-se no limiar de uma rotina delinquente, sendo salvo pela atuação influente de Demian. O encontro com o jovem notável representa a passagem da escuridão à luz, do terror paralisante para a bravura honrosa, da ignorância mais baixa ao cultivo da sabedoria. Também no conhecido romance O Jogo das Contas de Vidro, o dualismo se apresenta na distinção demonstrada entre uma vocação intelectual superior daqueles eruditos que se dedicavam à Castália e o resto da sociedade que vive imiscuída em questões de ordem prática e material. 


Como surge, afinal, essa temática dualista no trabalho literário do escritor germânico?


As experiências iniciais do autor, aquelas relacionadas à infância e à juventude, certamente marcaram com profundidade seu imaginário. Hesse era filho de teólogos protestantes, e seu destino estava aparentemente vinculado às expectativas dos progenitores: como eles, deveria dedicar-se aos estudos teológicos, e encerrando-se formalmente em um seminário, de lá sairia como pastor de um rebanho cristão. Sua residência, o lar constituído pela família Hesse, era um ambiente no qual reinava a ordem e a piedade, e embora o jovem Hermann admirasse essa harmonia, seu desejo verdadeiro consistia em mergulhar no mundo, expandir horizontes, bebendo no cálice das satisfações mais seculares. Por isso, fugiu do seminário, imergindo em uma existência dedicada ao conhecimento, à literatura e às inúmeras expedições de caráter místico e espiritual. A dicotomia entre os ambientes do lar paterno – e do seminário também naturalmente – e a realidade do mundo determinou a percepção do escritor Hermann Hesse. Seus personagens encontram-se com muita frequência divididos entre dois hemisférios, e quando não exatamente assim, o autor costuma caracterizar tal dualismo em indivíduos de características bastante antagônicas, como é o caso de Narciso e Goldmund. 


Que Hermann Hesse tenha interessado-se pela psicanálise é sugestivo porque demonstra não somente que seus interesses acercavam-se das questões freudianas, mas também que sua personalidade exigia uma análise de ordem psíquica. De fato, seu desenvolvimento sexual e intelectual como processo formativo e, concomitantemente, traumático delata-se em personagens como Demian e Harry Haller (O Lobo da Estepe), induzindo-nos a deduzir que para o autor alemão, a literatura não significava apenas uma forma artística de expressão; além disso, ela representava um dos elementos essenciais de sua autoanálise. 


Gabriel Santamaria é autor de O Evangelho dos Loucos (romance), No Tempo dos Segredos (romance), Assim Morre a Inocência (contos), Destino Navegante (Poemas), Para Ler no Caminho (Mensagens e Crônicas).

Nenhum comentário:

Postar um comentário